BC, Tesouro, bancos públicos e os malabarismos fiscais

Murilo Ferreira Viana e Antonio Carlos Costa Ávila Carvalho Jr


As instituições financeiras federais (IFFs) foram utilizadas pelo governo federal, entre 2008 e 2014, como motor da expansão do crédito na economia brasileira. A estratégia, inicialmente apresentada como medida anticíclica – para combater a crise financeira internacional – logo se transformou em padrão duradouro de política econômica, a despeito da retomada da economia já em 2010.
Para viabilizar a expansão do crédito pelas IFFs, o governo foi obrigado a atender dois requisitos: (i) disponibilizar vultosos recursos financeiros, que, posteriormente, seriam emprestados pelas instituições; e (ii) tornar possível o aumento do patrimônio de referência (PR) dos respectivos bancos públicos. O PR, neste caso, determina o volume máximo das operações ativas que podem ser realizadas pela instituição financeira, em atendimento aos limites de alavancagem estabelecidos pelo Comitê de Basileia e normatizados no Brasil pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
O atendimento simultâneo a esses dois requisitos poderia ser feito via aumento do capital social das IFFs. Tal solução, contudo, foi descartada, em vista do impacto fiscal negativo potencialmente elevado nas contas públicas. O aumento de capital de estatais é uma despesa primária. Ocorreria, portanto, deterioração do resultado primário e aumento da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP). Ao visar preservar os indicadores fiscais, a União, assim, optou pela concessão de crédito às IFFs, operação com impacto neutro no primário e na DLSP.
A questão, então, passou a ser como viabilizar a concessão dos créditos. A opção de emissão de títulos públicos em mercado, para obter os recursos necessários, dificilmente poderia ocorrer sem a deterioração das condições de juros e de mercado da dívida pública. Além disso, a União poderia ter dificuldade em vender tais títulos no mercado primário, já que os bancos federais – destinatários dos recursos que seriam captados em mercado – não participariam dos leilões dos papéis.
Como solução, a União utilizou dos vastos recursos depositados em sua Conta Única (CUTN), em grande parte oriundos da Lei 11.803/2008, a qual estabeleceu uma relação pouco harmoniosa entre o Tesouro Nacional (TN) e o Banco Central do Brasil (BCB). Isso porque, em razão desta lei, os resultados positivos (contábeis) semestrais oriundos da simples desvalorização cambial sobre o estoque de reservas internacionais – ainda que sem venda efetiva de divisas – passaram a ser transferidos pelo BCB ao TN, em espécie: de 2008 a 2018, cerca de R$ 700 bilhões foram depositados na CUTN.
A lei, no entanto, estabelecia que tais recursos somente se destinariam ao pagamento da Dívida Pública Mobiliária Federal (DPMF), o que não impediu que, via operação triangular, a seguir explicada, servissem de funding para os empréstimos concedidos pela União às IFFs.
As diversas medidas provisórias que autorizaram os empréstimos às IFFs reconheceram, em suas exposições de motivos, que, à época, a União não dispunha de recursos financeiros livres na CUTN (não vinculados a determinado tipo de gasto) e que, desse modo, cada crédito concedido seria “coberto” por emissão direta de títulos públicos ao respectivo banco federal.
Construiu-se, assim, o vaso comunicante entre os recursos transferidos pelo BCB ao TN e às instituições financeiras federais: a União assinaria contratos de mútuo (empréstimos) com os bancos federais e, em vez de entregar recursos em espécie, emitiria títulos públicos diretamente às IFFs. Em um segundo momento, a União utilizaria os fartos recursos transferidos pelo BCB à CUTN, para resgatar em dinheiro tais títulos. Sem esses recursos não seria possível resgatar os papéis colocados diretamente nas IFFs.
Esse malabarismo contábil e fiscal resultou em emissões diretas de títulos de curtíssimo prazo de resgate: foram emitidos ao menos R$ 44,5 bilhões em títulos públicos com vencimento entre 1 e 17 dias úteis, com destaque à medida provisória 453/2009, que resultou na emissão de R$ 13 bilhões em LTNs ao BNDES com prazo de apenas 1 dia útil. O crédito concedido pelo TN às IFFs saltou de 0,5% do PIB, em janeiro de 2008, para 9,4% do PIB, em final de 2014.
Faltava ainda viabilizar o aumento do patrimônio de referência dos bancos federais. De acordo com Basileia III, as instituições financeiras podem compor seu Capital Principal com instrumentos que atendam, entre outros, aos seguintes requisitos: liquidação subordinada ao pagamento dos demais passivos; perpetuidade do principal; remuneração integralmente variável; imediata utilização na compensação de prejuízos; não ser objeto de garantia ou seguro, etc. A solução adotada foi a de inserir, nos contratos de mútuo assinados entre as IFFs e a União, cláusulas que dotavam tais instrumentos dos atributos exigidos por Basileia.
Entre 2008 e 2014, cerca de R$ 59 bilhões de passivos lançados pelos bancos federais à União foram reconhecidos pelo BCB como elegíveis a compor o PR das IFFs, como Instrumentos Híbridos de Capital e Dívida (IHCDs).
O problema é que o emprego da emissão direta de títulos públicos pelo TN para “cobertura” de passivos emitidos pelos bancos não era compatível com duas recomendações exaradas pelo Comitê de Basileia: i) para que um passivo possa compor o PR é preciso que sua integralização seja efetuada com recursos “em espécie”; e ii) a instituição financeira federal emissora do passivo não pode, direta ou indiretamente, financiar a aquisição do passivo emitido.
Não obstante, em março de 2013, a Resolução CMN 4.192/2013 conferiu amparo legal à integralização de IHCDs via emissão direta de títulos aos bancos públicos. Seis meses depois, tal permissão foi excluída pela Resolução CMN 4.278/2013. Isso porque, ainda em 2013, técnicos do Comitê de Basileia, ao analisarem a aderência das normas brasileiras aos padrões de Basileia III, registraram em relatório (Regulatory Consistency Assessment Programme) que a emissão direta de títulos às IFFs contrariava as normas de Basileia e configurava concessão de financiamento à União.
Tais emissões diretas, frise-se, são objeto de processos ainda não apreciados pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A conferir como a Egrégia Corte de Contas irá se manifestar em relação a mais esse capítulo do malabarismo fiscal e monetário do grande livro das finanças públicas nacionais.
 
Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico em 09 de setembro de 2019, disponível no link: https://www.valor.com.br/opiniao/6426609/bc-tesouro-bancos-publicos-e-os-malabarismos-fiscais